segunda-feira, 5 de março de 2012

Parte da praia de Armação de Pêra é privada e o Estado quer comprá-la

A zona nascente do areal da estância balnear algarvia é usada há anos por milhares de veraneantes sem qualquer restrição, apesar de ser propriedade privada desde 1913. Um caso singular no litoral português. 

Os proprietários dos 31.696m2 da praia de Armação de Pêra
são os dez herdeiros de João da Costa Sant'Ana Leite

O Plano de Ordenamento da Orla Costeira (POOC) ditou o derrube de casas de praia e de barracas no litoral algarve, mas não tocou no direito de propriedade que uma família detém há 99 anos sobre três hectares da praia de Armação de Pêra. A zona nascente do areal pertence desde 1913 à família Santana Leite e o Estado quer agora comprá-la, por 200 mil euros, apesar de estar integrada no domínio público marítimo e de ser usada por toda a gente.

Não se pode lá construir, nem cobrar a entrada aos banhistas, mas a Administração da Região Hidrográfica (ARH) do Algarve está impedida de receber renda dos apoios balneares, porque o areal tem um dono, embora a propriedade esteja integrada no domínio público marítimo.

A família Santana Leite é proprietária, desde 1913, da maior parte da praia de Armação de Pêra - uma faixa que se estende por 31.696 metros quadrados, abrangendo a área reservada à pesca artesanal.

O Estado não pode exercer o pleno direito público de acesso e utilização da zona balnear, onde se situam os apoios de pesca, lota e três restaurante sem primeiro comprar a praia. O preço de 200 mil euros já foi acordado entre as partes, mas a escritura de aquisição não foi efectuada, porque o Ministério das Finanças ainda não autorizou. A ARH do Algarve devolveu à administração central, há cerca de três semanas, a verba orçamentada para a aquisição, autorizada pelo secretário de Estado do Ambiente no final de Dezembro.

Ao longo dos anos, o Estado tentou separar as águas entre o direito privado e público na área abrangida pelo domínio público marítimo, mas o conflito de interesses permanece.

O caso não será inédito, mas assume especial relevância no Algarve. Algo que o antigo ministro do Ambiente e do Ordenamento do Território Nunes Correia reconheceu em 2009, ao referir-se a "uma situação muito singular de um terreno comprovadamente privado em plena praia de Armação de Pêra", quando subscreveu a proposta de compra da parcela da praia.

A situação mais comum na região são as tentativas de alguns empreendimentos para condicionar o acesso à praia, quando obtém licenças para construir sobre falésias ou nas proximidades, como se verificou no concelho de Albufeira, na praia dos Tomates e nos Olhos d" Água (Villas d"Água).


Quem recebe a taxa?

Com o aproximar da época balnear, os concessionários dos apoios de praia, na zona nascente de Armação de Pêra, perguntam: a quem se paga a taxa de ocupação? Enquanto o assunto não se deslinda, Manuel Lourenço, dono do restaurante Estrela do Mar, opta por ficar à espera: "Falaram em fazer um contrato com um privado, mas achei esquisito." No passado, até à aprovação do POOC Vilamoura-Burgau, publicado em 1999, "pagava a renda à capitania, depois deixaram de cobrar". 

A presidente da ARH do Algarve, Valentina Calixto, adiantou que, com a entrada do novo ano económico, "será retomado em breve" o processo de aquisição da parcela privada do areal.

Os actuais donos da praia são os dez herdeiros de João da Costa Sant"Ana Leite - uma família tradicional de Armação de Pêra que fez o negócio quando esta era ainda uma zona piscatória e não se transformara na estância balnear que é hoje uma estância essencialmente turística. 

O direito à propriedade foi confirmado por um acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 10 de Dezembro de 1913. O ex- ministro Nunes Correia defendeu que só a compra do terreno "permite uma plena execução do que está previsto no POOC". A Câmara Municipal de Silves, nos últimos anos, investiu mais de seis milhões de euros na requalificação da frente de mar, mas só na parte poente. A parte nascente ficou por ordenar.

O preço a pagar foi considerado pelos avaliadores do Estado "aceitável, situando-se mesmo abaixo do valor real do imóvel". Até porque, justificam, na parte do terreno a adquirir está prevista a "implantação da totalidade dos apoios e equipamentos balneares". A ARH do Algarve pagará 130.234,17 euros, com a receita proveniente do Fundo de Protecção dos Recursos Hídricos. A restante parte, 69.785,83 euros, foi assumida pela câmara, que ficará com a posse da parte norte do caminho que limita a praia, onde fica o campo de futebol de Os Armacenses. 

João Pedro Santos, dono do Pedros"s Bar, tem a situação ainda mais original - adquiriu a direito à exploração do estabelecimento há 22 anos, por concurso público, lançado pela junta de freguesia. Paga uma renda à autarquia de 500 euros mensais. Para ocupar a via pública com esplanada paga ao município mais 1300 euros ano. Ficou a saber que a praia pertencia a um particular, ao pretender alargar a esplanada, mais 40 metros em direcção ao mar. "A ARH disse que não via inconveniente, deste que obtivesse o acordo da família Leite." Está a ultimar um contrato de arrendamento com o dono da praia: "Vão aplicar a mesma taxa que é cobrada pela ARH - fico a pagar 400 euros ano", adiantou.

A presidente da ARH confirma que este não é o único caso que o POOC não conseguiu resolver. "Há outros casos", acrescenta. À saída da praia da Armação de Pêra, já no concelho de Lagoa, na praia Vale do Olival, volta a repetir-se o conflito entre o direito público e o privado. O restaurante Calixtos tem nas proximidades placas a indicar "perigo" de erosão de falésias. O terreno em redor do apoio de praia, que servia de parque de estacionamento, apesar de se encontrar na faixa do domínio público marítimo, também pertence a um particular.

Fonte: Público

Sem comentários:

Enviar um comentário